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7 de jul. de 2012

Entre a cruz e a espada (e a balança)


A atual Constituição Federal do Brasil possui o seguinte dispositivo:

"Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público"
Um pouco antes, no Preâmbulo...

"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL."

Qual a razão de se ter um "Deus" ali no meio? Nenhum dos legisladores percebeu que talvez tivesse uma contradição? Ou, sendo menos otimista, acharam que seria uma boa ideia, cultural e socialmente falando? Vai saber...

Religião não interfere no Estado e Estado não interfere na religião, é mais ou menos assim

Em termos bem simples, o artigo citado (bastante auto-explicativo) indica o chamado Princípio da Laicidade, segundo o qual o Poder Público não pode manter relações de dependência e/ou intimidade com credos religiosos...

 Belas palavras, nenhum efeito:

AMÉM, IRMÃO?

Existem algumas normas jurídicas que privilegiam ou instituem práticas de determinadas religiões como fazer uma oração ou saudação específica de uma religião (muito comum em escolas do ensino fundamental e... câmaras de deputados e vereadores!) mas isso não é novidade, é algo que acontece desde antes de qualquer um de nós nascer, basta lembrar que no período imperial o Brasil possuía uma religião oficial, o catolicismo que ainda é majoritário, sendo seguido por milhões de brasileiros. Sem mencionar o fato de que em alguns lugares do mundo existem verdadeiras teocracias e a religião não é uma influência sobre a lei, ela é a própria lei.

O catolicismo mudou muito com o tempo e a forma de segui-lo mudou mais ainda. Há quem se diga católico, mas não segue vários de seus preceitos. Usar preservativos, não se casar virgem, fabricar e usar remédios (antes era visto como feitiçaria) são alguns dos exemplos de mudanças severas... enfim, da mesma forma que isso ficou no passado, a imposição de uma religião também ficou, ou deveria ter ficado...

Ainda existe uma constante e escandalosa parte da população que acha isso algo ruim, que as regras de sua religião são válidas e que devem ser seguidas ainda que isso implique descumprir outras consideradas mais amplas e importantes, como o dos Testemunhas de Jeová recusarem transfusões de sangue, o que pode por as próprias vidas e as de outras pessoas em perigo.
Só falta a faixa com a frase "Mandamentos e Retrocesso"

Um caso que é ao mesmo tempo recente e antigo é o dos crucifixos em espaços públicos, principalmente tribunais e varas judiciais, que já foram motivo de várias discussões e chegaram até o Conselho Nacional de Justiça. O CNJ é um órgão voltado à reformulação de quadros e meios no Judiciário, sobretudo no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e processual. 

Decidiu o CNJ que a presença de crucifixos em espaços públicos não contraria o princípio da laicidade e é benéfico para a sociedade. Como justificativa, foi dito que o crucifixo (Um homem nu ou seminu com os braços e pernas pregados numa cruz, símbolo maior do cristianismo) é reflexo da cultura brasileira, que tem inegável influência desta religião desde que foi descoberto. Uma das primeiras coisas que os "descobridores" europeus fizeram em solo foi realizar uma missa... Legal, e daí?

Sejamos práticos. Vamos pensar como um juiz age no exercício de seu dever:

O Juiz deve preservar a efetividade da lei através da jurisprudência (prudência da lei), aplicando esta aos casos concretos. nada impede que o juiz seja religioso, a própria Constituição afirma sua liberdade. O que não pode acontecer é o juiz resolver que suas convicções religiosas, filosóficas ou ideológicas estão acima do texto legal quando entram em conflito.
Fala sério... algo assim é MUITO tenso...

O(s) deus(es) que você segue ordena(m) algo que a "lei dos homens" proíbe. E agora, José?

A ideia geral que se tem de juízes é que são pessoas inteligentes e esclarecidas, se mantendo num patamar alheio ao do senso comum. Ainda assim, não deixaram de ser meros humanos, com suas personalidades e peculiaridades que definem sua individualidade. Surge a pergunta crucial: existe a possibilidade de um juiz colocar uma regra religiosa acima de uma lei jurídica? CLARO QUE EXISTE. Sempre existe e continuará existindo durante muito tempo, com uma considerável probabilidade de ser assim para sempre.

Mas não é um símbolo religioso em cima de sua mesa que vai mudar sua forma de pensar e julgar as causas que aparecerem... Se um juiz é católico, não é tirando o símbolo dali que ele vai se tornar um árduo defensor da justiça neutra e agnóstica. Ele vai julgar como um católico, esteja o crucifixo ali ou não. Religião e ideologia estão arraigadas psicologicamente ao ser humano, não é tão fácil assim tirar isso dele... na verdade, é quase impossível mudar a forma de pensar de uma pessoa apenas através de uma influência externa.
O glorioso STF... com um crucifixo ali na parede...

O que eu quis demostrar com o parágrafo anterior é que a presença de um crucifixo não vai alterar a forma de julgar de um juiz e que usar esse argumento para ser favorável à sua imediata retirada é infundado... Como exemplo temos o Supremo Tribunal Federal, que durante o julgamento da ADPF 54 evocou como nunca a importância de se manter a imparcialidade e a laicidade do magistrado.

Os símbolos religiosos devem ser retirados sim, mas por outro motivo: O espaço é público, está sujeito às regras legais, e fim de papo. Não há nada a ganhar com eles lá, estão ocupando espaço à toa e indevidamente, pois religiões não ditam regras para uma sociedade que diz ter orgulho de sua pluralidade e tolerância religiosas... as quais também estão em falta, se pensar bem. Usar do fator cultural não é uma boa ideia, um símbolo religioso ainda é um símbolo religioso. A religião, sendo um fenômeno cultural, quase onipresente no globo não pode ter formas definidas atreladas aos Poderes Públicos.

Se, com o crucifixo ou sem ele, não se altera a finalidade do espaço, que seja retirado de uma vez e ninguém vai perder nada com isso.

Na boa... OLHA O TAMANHO DESSA COISA!
O Brasil é um país laico no texto (nem tanto) e ainda possui uma Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional, um partido com o nome "Cristão", leis que privilegiam religiões e colocam bíblias em espaços públicos (tem uma do lado da mesa da Presidência do Senado Federal), mas nenhuma Constituição, engraçado né?



... né?


3 comentários:

  1. O professor de Constitucional explicou sobre isso esses dias: sobre o preâmbulo da constituição, como o poder constituinte originário representa o povo ele pode falar sobre Deus pois o povo tem liberdade religiosa. Foi instituído no Brasil o Estado Laico: "Não possui religião oficial, proíbe qualquer relação de dependência entre Estado e Igreja, estabelecendo a liberdade de crença religiosa (ao povo) e a tolerância entre as religiões"
    Aí sim é que entram as discrepâncias: crucifixo em repartições públicas como tribunais (e até no STF), feriados religiosos e etc!!! Isto sim é bem paradoxal: "Somos um Estado Laico com a benção do Papa" a influência da igreja ainda prevalece.

    E sobre a inscrição no real "Deus seja louvado" ahh... esta meu querido é uma metáfora. Se utilizaram da fé para usar uma metáfora e dar uma zombadinha, fortificando o materialismo: Deus, neste caso, é o próprio dinheiro "O Dinheiro seja louvado" " O Dinheiro move o mundo"

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  2. O preâmbulo pode falar, mas não deve... principalmente pq é sobre um deus específico. Não fere a liberdade, mas fere sim a laicidade, pois o Estado deve ser neutro, ou seja, não deve se manifestar quanto a isso (minha opinião doutrinária difere da do prof.).

    A inscrição nas cédulas é uma influência conjunta do catolicismo e dos EUA, que escrevem "In God We Trust" (Em Deus Confiamos) em suas notas. Imagine que em vez da frase fosse o desenho de uma cruz... na prática, não tem diferença nenhuma.

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  3. Mudaram a Lei de Deus Os Dez Mandamentos, tirando o segundo mandamento que proíbe fazer e adorar imagens, e trocaram o dia de repouso que Deus deixou, e colocaram outro dia da semana, e para conservar o número de dez, dividiram o décimo mandamento em dois. Aí sim, isso que é mudar a Lei de Deus.

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